COMO UMA SOCIEDADE ECOSSOCIALISTA PODERIA PARECER?
- C-TLP
- 16 de jan. de 2022
- 23 min de leitura
Atualizado: 29 de nov. de 2024
DAVID KLEIN

What Might an Ecosocialist Society Look Like?, em SystemChangeNotClimateChange.org, 27/07/2021 ○ 16/01/2022
Tradução R. d' Arêde
► Com a tecnologia existente, e utilizando apenas subseções das regiões disponíveis, já é possível captar mais de 100 vezes a demanda energética global. Os obstáculos não seriam técnicos nem econômicos, mas sociais e políticos.
Antes de descrever as possíveis características de um futuro ecossocialista, é importante considerar por que um tal sistema seria necessário. Por que os problemas que poderiam ser resolvidos com o ecossocialismo não podem ser remediados dentro do atual sistema capitalista mundial?
A primeira parte deste ensaio resume os relatórios científicos mais recentes sobre a situação climática e a dimensão da crise ecológica, revisa os métodos e tecnologias que poderiam ser utilizados para enfrentá-la e expõe de forma sucinta a incapacidade estrutural do capitalismo em fornecer soluções adequadas ao tamanho da crise. A segunda parte retoma o tema do título — ecossocialismo — juntamente com as estratégias para avançarmos nessa direção.
PARTE I | PANORAMA GERAL
A ameaça que as crises ecológica e climática representam para a vida na terra dificilmente pode ser exagerada. Em 2019, um artigo na revista Nature alertava que o número de espécies de plantas e animais à beira da extinção havia chegado à casa do milhão. No mesmo ano, um estudo das Nações Unidas identificou o aquecimento global como o principal fator de degradação da vida selvagem. Grande parte da devastação observada até o momento foi catalogada no relatório Living Planet 2020, da WWF, registrando um declínio de 68% na população mundial de vertebrados nos últimos 50 anos. De modo mais sumário, cientistas reportam que o planeta Terra está passando por um 6º evento de extinção em massa (o evento anterior, 66 milhões de anos atrás, deu fim aos dinossauros)
A escala da crise ambiental não tem precedentes na história da humanidade. Estão em jogo a civilização humana e bilhões de vidas. Em 2020, um artigo divulgado na Proceedings of the National Academy of Sciences previa que, para cada acréscimo de 1°C acima da média mundial de 2019, um bilhão de pessoas seriam forçadas a abandonar suas regiões ou enfrentar um calor insuportável. O artigo advertia que, em um cenário de emissões crescentes, dentro de 50 anos as áreas que hoje abrigam um terço da população mundial podem vir a experimentar as mesmas temperaturas que as regiões mais quentes do Saara.
Para cada adicional de 1°C acima da média mundial de 2019, um bilhão de pessoas serão forçadas a abandonar suas regiões ou enfrentar um calor insuportável.
Resumindo as conclusões de cerca de 150 estudos científicos, um artigo de 2021, escrito por 17 cientistas, alertava que "o tamanho da ameaça à biosfera e a todas as suas formas de vida, incluindo a humanidade, é de fato tão grande que mesmo os experts mais bem informados têm dificuldades de dimensioná-lo".
Aumentando ainda mais o senso de urgência, 101 laureados com o prêmio Nobel divulgaram, em abril de 2021, uma carta aberta afirmando que "fomos sequestrados pela grande questão moral de nosso tempo: a crise climática e a correspondente destruição da natureza". Eles apelaram por um tratado mundial de não proliferação de combustíveis fósseis.
O aquecimento global é impulsionado pelos gases de efeito estufa na atmosfera, e, apesar das reiteradas promessas das "lideranças climáticas" governamentais, as emissões seguem em níveis elevados. Em 2020, as emissões globais caíram insuficientes 5,8%, devido aos lockdowns de enfrentamento à Covid-19, mas voltaram a crescer no final do ano. A Agência Internacional de Energia (IEA) prevê, para 2021, o segundo maior aumento anual na história das emissões de gases de efeito estufa, à medida que as economias globais se recuperam da recessão causada pela Covid-19. Em maio de 2021, a concentração média mensal de CO2 chegou ao recorde de 419ppm (partes por milhão) em Mauna Loa, no Havaí, quebrando o recorde anterior de 417ppm, registrado em maio de 2020.
De modo geral, os fatores desse ecocídio não dizem respeito apenas às mudanças climáticas, mas também à destruição de habitats, aos despejos tóxicos, à poluição plástica nos oceanos, ao envenenamento por radiação e outros subprodutos e derivados esperados da economia capitalista global. Apesar da enxurrada de alertas da comunidade científica, da pressão dos ativistas ambientais e até mesmo alertas advindos de instituições profundamente enraizadas na economia capitalista, toda essa destruição segue inalterada.
Considere, por exemplo, que em maio de 2021 a Agência Internacional de Energia, no relatório Net Zero by 2050: A Roadmap for the Global Energy Sector, fez um apelo sem precedentes para que o mundo atingisse rapidamente a marca de zero emissões. A este relatório seguiu-se uma ampla cobertura dos noticiários, assim como várias manifestações de otimismo. Contudo, de fevereiro até o final de abril de 2021, a administração Biden aprovou algo em torno de 1.200 licenças de perfuração em terras federais, juntamente com mais de 200 licenças offshore, além de defender no tribunal o projeto Willow da ConocoPhillips no Alasca, do qual se espera emissões de 260 milhões de toneladas métricas de CO2 durante os próximos 30 anos, o equivalente a 66 usinas de carvão. E Biden está longe de ser a única liderança mundial a apoiar a expansão de combustíveis fósseis.
A SUSTENTABILIDADE GLOBAL É ALCANÇÁVEL?
A trajetória atual rumo ao suicídio planetário não pode ser atribuída à falta de tecnologias sustentáveis para a agricultura, transporte, moradias e produção de energia. Os meios necessários para que a marca de zero emissões seja alcançada até meados deste século, como solicitado no relatório especial do Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climática (IPCC) em 2018, já existem, graças à superabundância de energia disponibilizada pelo sol, que irradia para a Terra, em apenas uma hora, muito mais energia do que toda a humanidade consome em um ano.
A Carbon Tracker Initiative, uma think tank sediada em Londres que orienta investidores sobre os riscos climáticos em seus portfólios, divulgou um relatório demonstrando que, com a tecnologia existente, e utilizando apenas subseções das regiões disponíveis, já é possível captar, apenas em energia solar e eólica, mais de 100 vezes a atual demanda energética mundial. Na realidade, a superfície necessária para que painéis solares supram, sozinhos, toda a demanda energética global corresponde a 0,3% da área terrestre do planeta, o que é menos do que a área atualmente utilizada pelas estruturas de combustíveis fósseis.
A pesquisa e o planejamento detalhado para que o mundo alcance a marca de zero emissões foram iniciados por Mark Jacobson, da Universidade de Stanford. Jacobson e seus colaboradores desenvolveram “roteiros para 139 países e os 50 estados dos EUA realizarem 100% da transição energética para as energias solar, eólica e hídrica, limpas e renováveis para todos os fins até 2050, e 80% até 2030”. Em sua declaração ao congresso [estadunidense], Jacobson explicou que “os principais obstáculos para uma conversão não são técnicos nem econômicos, mas sociais e políticos”.
Os principais obstáculos para uma conversão não são técnicos nem econômicos, mas sociais e políticos.
O trabalho de Jacobson e de seus colaboradores é consistente com muitos outros estudos independentes, entre os quais o recém lançado relatório da Net-Zero America, que traça cinco vias para que a meta de zero emissões seja alcançada através de uma rápida expansão do uso de painéis solares e turbinas eólicas. Deve-se observar, contudo, que a disponibilidade limitada de metais e elementos terras raras[1] torna preferível a adoção de meios de transporte de massa elétricos e de alta qualidade, ao invés de veículos individuais, elétricos ou não.
Métodos agrícolas sustentáveis também já estão disponíveis, como evidenciado pela adoção de compostagem orgânica, consorciação de culturas, biopesticidas, rotação de culturas e agricultura urbana extensiva em Cuba[2] desde o início dos anos 1990, posteriormente alcançando reconhecimento mundial.
A humanidade já possui os meios para zerar rapidamente as emissões e viver bem e de forma sustentável através do uso de energias renováveis, transportes de massa elétricos e agroecologia. Assim, diante da iminente ameaça ecocida, por que os governos não estão tomando medidas mais sérias à altura da crise, a fim de salvar a humanidade e proteger a biodiversidade do planeta? Por que a situação só está piorando?
O CULPADO: CAPITALISMO
Devido à sua necessidade de crescimento econômico eterno, o capitalismo é o principal motor das crises ecológica e climática. Uma empresa que não garante crescimento econômico é uma empresa que logo estará fora do jogo, e o sistema capitalista global é constituído por uma imensa diversidade de empresas em expansão. Como disse David Harvey: “crescimento zero é uma necessidade (para evitar o colapso ecológico), e crescimento zero é incompatível com o capitalismo”. O capitalismo exige o perpétuo crescimento econômico para evitar crises como a Grande Depressão. Mais especificamente, a fim de evitar o desemprego em massa e a miséria econômica, o capitalismo precisa aumentar a produção de mercadorias, a extração de recursos, a quantidade de lixo e de despejos tóxicos, assim como a sempre crescente produção de energia.
A expansão capitalista assume três formas:
A conquista colonial e o imperialismo, introduzindo a produção de mercadorias em novos territórios, em busca de novos mercados e mão de obra barata;
A crescente assimilação dos bens comuns públicos à lógica do capitalismo, como a privatização e mercantilização da assistência médica, da educação e da água potável;
O crescimento secular monotônico do capitalismo na produção e consumo de mercadorias.
É esta terceira forma de expansão capitalista que impulsiona, de forma mais direta, a catástrofe ambiental. Podemos citar como exemplos o crescimento exponencial da produção de plástico desde a Segunda Guerra Mundial; o crescimento explosivo das viagens aéreas; a proliferação dos telefones celulares; o consumo energético global; o sistema de dados descentralizado[3] das criptomoedas (que deixam enormes “pegadas de carbono”); e o rápido crescimento da indústria de armas.
Por definição, o capitalismo precisa se expandir, e essa expansão já ultrapassou os limites ecológicos do planeta, no sentido de que o consumo global já excede a biocapacidade do planeta regenerar os recursos consumidos. De acordo com o relatório da WWF de 2020, seriam necessários 1,56 planetas Terras para atender de forma renovável as demandas que a humanidade impõe à natureza anualmente. O capitalismo não é apenas incapaz de responder adequadamente à crise ambiental, ele é a própria causa da crise, e só pode torná-la pior.
Há uma alternativa viável?
PARTE II | ECOSSOCIALISMO
Construir um movimento capaz de salvar a biosfera requer mais do que apenas ser contra o capitalismo e a destruição ecocida que ele promove; requer também ser a favor de algo, e comunicar uma visão positiva do futuro. O ecossocialismo é essa visão.
Desde já reconhecemos que o ecossocialismo não pode emergir do nada. A viabilidade das relações sociais pós-capitalistas inevitavelmente depende da extensão da destruição deixada pelo capitalismo e das decisões tomadas no desenrolar de um processo democrático revolucionário. Assim, os pressupostos implícitos residem, necessariamente, nas propostas especulativas e aspiracionais subsequentes.
Embora não haja um consenso universal a respeito de um esquema para o ecossocialismo, suas características gerais são amplamente corroboradas. O ecossocialismo reconhece o princípio ecológico da sustentabilidade como um princípio essencial à vida. O ecossocialismo é democrático e reivindica uma produção sustentável fundamentada nas necessidades humanas, e não no lucro. O ecossocialismo propõe, o que é de importância crucial, uma economia estacionária que não requer crescimento econômico. Embora o socialismo seja capaz de realizar este crescimento, o mesmo não é exigido para que crises econômicas sejam evitadas, ao contrário do capitalismo. É essa característica determinante do socialismo que torna possível a sustentabilidade.
As exigências energéticas de uma sociedade ecossocialista são bem menores do que as exigências do capitalismo. Por exemplo, estima-se que mais de 150 bilhões de recipientes descartáveis de bebidas são comprados anualmente nos Estados Unidos, e 320 milhões de copos descartáveis são jogados fora diariamente. Mais de 100 bilhões de correspondências não solicitadas são entregues pelos correios a cada ano, gerando 51 milhões de toneladas de gases de efeito estufa através de sua produção e decomposição. A poluição luminosa noturna, que perturba os ciclos naturais com o único propósito de fazer publicidade e promover o superconsumo, também é destrutiva e desnecessária. Esses e muitos outros desperdícios de energia seriam naturalmente eliminados em um quadro de referência ecossocialista.
Poucos discordariam que um ecossocialismo viável deva incluir assistência médica, educação e transporte de massa gratuitos, bem como outros serviços. Alguns países capitalistas já se aproximam destes objetivos, de modo que o ecossocialismo poderia ir além. A assistência veterinária, por exemplo, poderia ser incluída entre os serviços com financiamento público, tanto para animais domésticos quanto selvagens.
O ecossocialismo será construído a partir daquilo que o precede. Assim, a reorientação das estruturas existentes cumpre um importante papel em seu desenvolvimento. Por exemplo, os centros comerciais já existentes poderiam ser convertidos em centros comunitários, com jardins, instalações desportivas e de lazer, salas de teatro e para concertos, espaços para assembleias políticas comunitárias, serviços médicos e outros mais.
PODER POLÍTICO E GOVERNO ECOSSOCIALISTA
O estágio avançado da crise climática impõe sérias restrições ambientais a qualquer sociedade pós-capitalista futura. Portanto, um governo ecossocialista democraticamente escolhido precisaria de poder político suficiente para desativar ou reorientar, em escala nacional e internacional, as indústrias destrutivas, incluindo não apenas as de combustíveis fósseis, mas também aquelas dependentes deste tipo de energia. Para alcançar esse objetivo será necessário socializar praticamente toda a grande indústria. Além disso, o sequestro de carbono em larga escala poderá ser necessário na restauração de partes da biosfera, o que exigirá coordenação governamental.
Contudo, isso não significa que pequenos negócios operados por seus proprietários, artesanatos locais, restaurantes familiares e independentes[4], cooperativa de trabalhadores ou famílias de pequenos agricultores tenham que ser nacionalizados, embora algumas regulações possam ser necessárias. Todavia, estas são questões a serem resolvidas através de processos democráticos.
É importante observar que algumas indústrias e serviços precisarão ser expandidos, incluindo a conservação de energia e os sistemas de energia renovável, a produção de veículos mais resistentes para o transporte de massa, a construção de moradias com eficiência energética, a produção de utensílios e eletrônicos de longa duração, oficinas de reparos, assistência médica, escolas e todo tipo de serviço público, assim como a remediação ambiental[5], o reflorestamento e a agricultura orgânica.
DINHEIRO E BANCOS
Que tipo de função teria o dinheiro em uma sociedade ecossocialista? No capitalismo, ele pode ser usado não apenas para comprar coisas em geral, mas também como capital, ou seja, um investimento cujo propósito é gerar mais dinheiro. Essa é a função de Wall Street.
Não haveria Wall Street no ecossocialismo. Uma sociedade ecossocialista poderia restringir o uso individual do dinheiro tão somente para a compra de bens, e deixar os bancos públicos como única fonte de capital para novos desenvolvimentos, como construir ou aprimorar centros de assistência médica, instalações para armazenagem de energia, parques e centros comunitários; remediar a destruição ambiental; e apoiar as mais variadas iniciativas agrícolas, artísticas e recreativas. Mas os bancos seriam proibidos de fazer empréstimos de capital com o propósito de especular e lucrar com o trabalho dos outros.
TRABALHO E RENUMERAÇÃO
Como David Graeber notoriamente observou, a maioria dos empregos no capitalismo não faz sentido algum ou é destrutiva. Por exemplo: publicidade, direito societário, serviços financeiros, extração de combustíveis fósseis, gestão de seguros de saúde, relações públicas, produção de plástico, telemarketing, produção de armas, assim como grande parte dos empregos militares, policiais e de segurança. A eliminação desses e outros empregos desnecessários liberaria mais [força de] trabalho, que, uma vez socializada, poderia reduzir drasticamente a jornada semanal e aumentar o tempo livre.
Mas para o trabalho que é necessário, como as pessoas seriam remuneradas? Há mais de um século, Bertrand Russell escreveu Caminhos para a Liberdade: Socialismo, Anarquismo e Sindicalismo [The Proposed Roads to Freedom: Socialism, Anarchism, and Syndicalism]. Algumas de suas propostas poderiam funcionar em uma economia ecossocialista.
Considere a questão: os adultos deveriam ter que trabalhar se estivessem aptos a fazê-lo? Russell sugeriu que, mesmo no contexto de uma capacidade produtiva muito mais limitada, como em 1918, as necessidades fundamentais, tais como alimentação, abrigo e medicamentos poderiam ser disponibilizadas sem restrição. Alimentos básicos, como pão, frutas e vegetais poderiam ser essencialmente gratuitos, organizados por um programa de garantia de rendimentos mínimos ou alguma forma de crédito.
Mas, visto que algum trabalho tem que ser feito, qual seria o incentivo para que as pessoas o fizessem? Russell coloca a coisa da seguinte forma:
“Uma pequena renda, suficiente para as necessidades, deve ser assegurada a todos, trabalhem ou não, e (…) uma renda maior, tão maior quanto possa ser justificada no total de mercadorias produzidas, deve ser dada àqueles que estejam dispostos a se engajar em algum trabalho considerado útil pela comunidade (…) Poderíamos, por exemplo, oferecer uma renda intermediária àqueles que estejam dispostos a trabalhar apenas metade do número usual de horas, e uma renda acima da maioria dos trabalhadores àqueles que escolhessem uma ocupação especialmente desagradável”.
Aqueles que escolhessem realizar trabalhos considerados valiosos pela comunidade (provavelmente a maioria das pessoas) poderiam receber créditos para coisas que vão além das necessidades básicas, como obras de arte, bicicletas de corrida de alta qualidade, veleiros, vinhos raros, viagens para outras partes do mundo em grandes embarcações, dirigíveis ou aeronaves movidas a hidrogênio, etc.
Mas também poderiam haver recompensas não monetárias para contribuições significativas. Muitas pessoas valorizam mais o reconhecimento público e a gratidão do que dinheiro além do requerido para as necessidades básicas. Como exemplo, poderíamos citar as contribuições científicas (pense em Jonas Salk), premiações de ensino, reconhecimento público por murais artísticos, contribuições para o bem-estar dos animais — qualquer coisa que possa ser valorizado por comunidades locais, Estados nacionais ou pelo mundo em geral.
AGRICULTURA, ANIMAIS E CIDADES
Segundo o IPCC, a agricultura, a silvicultura, e outras formas de utilização da terra, respondem por quase um quarto das emissões mundiais de gases de efeito estufa. Isto se deve, em grande parte, ao desmatamento, à utilização de maquinário à base de combustíveis fósseis, à pecuária, aos fertilizantes à base de petróleo, aos produtos químicos e às perturbações do solo. Sistemas de auditoria alternativos oferecem estimativas ainda mais elevadas das atuais “pegadas de carbono” na produção de alimentos.
Além disso, o transporte marítimo global atualmente produz tanto dióxido de carbono quanto todas as fábricas de carvão estadunidenses juntas, e grande parte dos alimentos produzidos no mundo é transportada através de oceanos e fronteiras. A produção de alimentos destinada aos centros capitalistas globais também depende de seres humanos altamente explorados trazidos de países mais pobres, e o próprio alimento importado para estes centros capitalistas utiliza trabalhadores altamente explorados e oprimidos em outros lugares do mundo.
A agroindústria não apenas é a principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa como também impõe a mercantilização e o sofrimento de animais, em prol da maior eficiência produtiva. O impulso capitalista por lucros cada vez maiores na indústria alimentícia resultou em um sistema de sequestro e matança de animais através da pecuária industrial, cuja eficiência, volume de produção e indescritível crueldade não têm precedentes. Ainda assim, como observado na primeira parte deste ensaio, essa faceta do capitalismo é ofuscada pelas extinções em massa que este sistema econômico realiza em escala planetária.
Para reverter as extinções que o capitalismo põe em curso, E. O. Wilson propôs o programa de “meia-Terra”. Ele calculou que ao menos 80% de todas as espécies poderiam se renovar e sobreviver com essa fração do planeta protegida. A fim de realizar esse programa, seria necessário a criação de novas cidades para assentar nelas a maioria dos seres humanos, mas a proposta inclui deixar os povos originários fora desse processo, uma vez que eles têm protegido a biodiversidade há milênios.
Com ou sem um programa de meia-Terra, mudanças transformadoras na produção de alimentos são necessárias para a sobrevivência em quaisquer circunstâncias, e certamente teriam lugar num cenário ecossocialista. Utilizar métodos de agroecologia, deslocar a produção de alimentos para o perímetro das cidades, implementar fazendas verticais no espaço urbano, promover culinárias com base em alimentos sazonais produzidos localmente, e tornar a conservação de alimentos parte destes sistemas nas áreas onde as estações de crescimento são curtos, reduziriam drasticamente as pegadas de carbono da agricultura e de seu transporte, e mesmo ajudaria a reduzir a quantidade de CO2 da atmosfera.
Quais seriam as demandas de trabalho para a produção orgânica e sustentável de alimentos? Afinal, sem máquinas movidas a combustíveis fósseis, fertilizantes à base de petróleo e outros aspectos da agroindústria, pode vir a ser necessário mais trabalho humano e trabalho animal humanamente assistido (como bois e cavalos de tração). Contudo, dependendo das condições climáticas e ambientais, essas exigências de trabalho poderiam ser compensadas com a utilização de tratores e máquinas elétricas, além da interrupção do processamento extensivo de alimentos não saudáveis, da produção de etanol, de xarope de milho e outras opções duvidosas do modelo capitalista de agricultura.
COMO UM FUTURO ECOSSOCIALISTA PODE SER ALCANÇADO?
Para derrotar o capitalismo é importante compreendê-lo. Em seu centro está o mais-valor, a diferença entre o que é pago ao trabalhador e o valor de seu trabalho. O mais-valor é o manancial do qual todos os outros lucros fluem (para cima) no capitalismo, e pode ser pensado como o interruptor liga/desliga do capitalismo.
Desligue o mais-valor, e o capitalismo não poderá mais se reproduzir. A classe trabalhadora está, portanto, em uma posição única para liderar a luta pela abolição do capitalismo, porque ela é a classe que gera mais-valor.
Observando a situação atual do mundo, seria difícil sustentar que a estratégia pós-modernista das últimas décadas, de se concentrar quase que exclusivamente sobre a [questão da] identidade, esquecendo-se quase por completo do capitalismo, tenha sido qualquer outra coisa que não um desastre. Não só o mundo está na iminência do colapso ecológico como também a classe trabalhadora jamais esteve tão polarizada. Se o recrudescimento da supremacia branca servir de medida, a política identitária falhou até mesmo em seus próprios termos.
Felizmente, nos últimos anos vem crescendo o reconhecimento de que o capitalismo não é apenas o principal motor da destruição da biosfera, mas um sistema econômico falido, também em seus próprios termos, gerando extremos de desigualdade econômica jamais vistos e perpetuando o racismo institucional. Como disse Malcolm X, “não existe capitalismo sem racismo”.
Uma estratégia para reduzir a destruição da natureza pelo capitalismo, enquanto se constrói um futuro ecossocialista, talvez seja, primeiramente, empurrar o sistema capitalista até os limites (insuficientes) daquilo que ele pode aceitar, e, então, fazer as exigências, razoáveis e necessárias à sobrevivência, que ele não pode acomodar. É neste momento que o sistema está mais vulnerável ao colapso. O Novo Acordo Verde (Green New Deal), juntamente com a construção da unidade e do poder da classe trabalhadora, realiza uma abordagem desse tipo.
Primeiramente, empurrar o sistema capitalista até os limites (insuficientes) daquilo que ele pode aceitar, e, então, fazer as exigências, razoáveis e necessárias à sobrevivência, que ele não pode acomodar.
Atualmente, o Novo Acordo Verde é menos um conjunto específico de políticas e mais um referencial para políticas ambientais coerentes e de longo alcance, que iriam:
Nacionalizar a indústria de combustíveis fósseis e as indústrias dependentes deste tipo de combustível, com o propósito de eliminá-las gradualmente.
Lançar um programa nacional de emergência para impulsionar programas de conservação de energia, projetos de energia renovável, transportes de massa elétricos e agricultura sustentável.
Instituir um programa federal de obras públicas, semelhante aos programas de Franklin D. Roosevelt para lidar com a Grande Depressão na década de 1930, a fim de requalificar e empregar os trabalhadores das indústrias dependentes de combustíveis fósseis e construir uma nova economia sustentável, com salários e benefícios elevados.
Este terceiro ponto é essencial. Sem garantias de empregos bem remunerados para os trabalhadores que correm o risco de perder seus empregos em decorrência da eliminação dos combustíveis fósseis, não seria possível materializar um Novo Acordo Verde viável. Quanto ao empoderamento dos trabalhadores, a eventual aprovação do PRO-Act (Protecting the Right to Organize Act), atualmente no Senado [estadunidense], contribuiria significativamente para fortalecer os direitos dos trabalhadores e abrir portas para a formação de sindicatos e adesão de novos membros — o que também ajudaria a pavimentar o caminho para um Novo Acordo Verde.
Uma classe trabalhadora forte e unificada é capaz de organizar e realizar greves gerais nacionais e internacionais como parte da luta revolucionária pela derrubada do capitalismo, e iniciar a construção de um sistema de relações humanas sustentável. Tais ações serão cruciais na luta para desmantelar o capitalismo e criar uma alternativa ecossocialista.
Contudo, esse grau elevado de resistência organizada ainda não existe. Então, o que pode ser feito sob as circunstâncias atuais? Muito pode e deve ser feito. Ações em massa são essenciais nesse momento. Organizações norte-americanas, como Black Socialists in America, Democratic Socialists of America, Extinction Rebellion, Food & Water Action, Food & Water Watch, Sunrise Movement, System Change Not Climate Change, entre outras, estão trabalhando para deter a destruição da natureza através de eleições, legislações, ações judiciais, ações educativas, ocupação direta e organização radical. Junte-se a elas!
Ainda há tempo, mas depende de uma rápida organização, união e agitação militante dos trabalhadores por um mundo melhor. A sobrevivência da vida neste planeta depende disso.
Agradecimento: O autor gostaria de agradecer a Maura Stephens por suas valiosas sugestões e extensiva edição.
David Klein Físico-matemático e professor de matemática na Universidade do Estado da Califórnia, Northridge, onde é diretor do Programa de Ciência Climática. O autor também é membro de longa data do System Change not Climate Change e autor do e-book Capitalism and Climate Change: The Science and Politics of Global Warming
LISTAGEM DE TODAS AS REFERÊNCIAS EXTERNAS
Humans are driving one million species to extinction (nature.com) | Artigo publicado na revista Nature, indicando que um milhão de espécies de plantas e animais estão à beira da extinção
Global Assessment Report on Biodiversity and Ecosystem Services, IPBES secretariat & Humans Are Speeding Extinction and Altering the Natural World at an ‘Unprecedented’ Pace – The New York Times (nytimes.com) | Relatório do secretariado do IPBES sobre biodiversidade, e um estudo das Nações Unidas identificando o aquecimento global como o principal fator de degradação da vida selvagem.
Press | Living Planet Report 2020 | WWF (panda.org) | Relatório da WWF onde se registra um declínio de 68% na população de vertebrados ao redor do mundo só nos últimos 50 anos.
Vertebrates on the brink as indicators of biological annihilation and the sixth mass extinction, PNAS | Declarações de cientistas indicando que a Terra estaria passando por um sexto evento de extinção em massa.
Future of the human climate niche, PNAS | Artigo divulgado na Proceedings of the National Academy of Sciences prevendo que, para cada 1°C acima da média mundial de 2019, bilhões de pessoas serão forçadas a abandonar suas regiões ou a lidar com um calor insuportável
Global Warming of 1.5 ºC — (ipcc.ch) | Relatório especial do Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climática/IPCC (2018) solicitando que a marca de zero emissões seja alcançada até meados do século XXI.
The Sky’s the Limit: Solar and wind energy potential – Carbon Tracker Initiative | Relatório da Carbon Tracker Initiative, uma think tank que orienta investidores sobre os riscos climáticos para seus portfólios, divulgando que, com a tecnologia já existente, e utilizando subseções das regiões disponíveis, é possível captar mais de 100 vezes a atual demanda mundial apenas utilizando energia solar e eólica.
Roadmaps for 139 Countries and the 50 United States to Transition to 100% Clean, Renewable Wind, Water, and Solar (WWS) Power for all Purposes by 2050 and 80% by 2030 | Declaração de Mark Jacobson, da Universidade de Stanford, ao congresso estadunidense, apresentando roteiros para que 139 países e os EUA façam 100% da transição para energia solar, eólica e hídrica, limpa e renovável para todos os fins, até 2050, e 80% da transição até 2030, e destacando que “os principais obstáculos para uma conversão não são técnicos nem econômicos, mas sociais e políticos”.
Capitalism and Climate Change: The Science and Politics of Global Warming” (eBook) – Stephanie McMillan | Estudo independente condizente com a proposta de Mark Jacobson.
Net Zero America Project (princeton.edu) | Relatório em que são apresentadas 5 vias para se alcançar a meta de zero emissões por meio de um rápido aumento do uso de painéis solares e turbinas eólicas. Observando, contudo, que a disponibilidade limitada de metais e elementos de terras raras torna preferível o uso de transportes de massa elétricos e de alta qualidade ao invés de veículos individuais, elétricos ou não.
Net Zero by 2050 – Analysis – IEA | Relatório da Agência Internacional de Energia com um apelo sem precedentes para que o mundo atinja a marca de zero emissões o mais rápido possível.
CO2 emissions – Global Energy Review 2021 – Analysis – IEA | Registro da Agência Internacional de Energia sobre a queda de 5,8% nas emissões globais devido aos lockdowns de enfrentamento à Covid-19.
IEA – International Energy Agency & Carbon emissions to soar in 2021 by second highest rate in history | Greenhouse gas emissions | The Guardian | Página da Agência Internacional de Energia e a previsão do segundo maior aumento anual na história das emissões de gases de efeito estufa à medida que as economias globais forem se recuperando da recessão causada pela Covid-19.
101 Nobel laureates call for global fossil fuel non-proliferation treaty | Fossil fuels | The Guardian & The Fossil Fuel Non-Proliferation Treaty (fossilfueltreaty.org) | Carta aberta de 101 laureados pelo prêmio Nobel, afirmando que “fomos capturados pela grande questão moral de nosso tempo: a crise climática e a correspondente destruição da natureza”, e apelando por um tratado mundial de não proliferação de combustíveis fósseis.
Monthly Review | Cuban Urban Agriculture as a Strategy for Food Sovereignty & Relatório Living Planet WWF 2006 | Artigo sobre os métodos agrícolas sustentáveis já disponíveis e evidenciados pela adoção de compostagem orgânica, consorciação de culturas, biopesticidas, rotação de culturas e agricultura urbana extensiva em Cuba, seguido do relatório da WWF que ilustra o reconhecimento mundial da experiência cubana.
Monthly Review | The Planetary Emergency | Artigo com estimativas de que mais de 150 bilhões de recipientes descartáveis para bebidas são adquiridos todo ano nos Estados Unidos; que 320 milhões de copos são descartados a cada dia; que 100 bilhões de correspondências postais não solicitadas são entregues nas caixas de correios a cada ano e geram, anualmente, 51 milhões de toneladas de gases de efeito estufa através do processo de produção e de decomposição; que a poluição luminosa noturna perturba os ciclos naturais com o único propósito publicitário de promover mais consumo, sendo patentemente destrutiva e desnecessária para a vida, e indicando, por fim, que esses e muitos outros desperdícios de energia seriam eliminados em um cenário ecossocialista.
Relatório WWF 2020 | Relatório indicando que seriam necessários 1,56 planetas Terras para atender, de forma renovável, as exigências que a humanidade atualmente impõe à natureza.
Top scientists warn of ‘ghastly future of mass extinction’ and climate disruption | The Guardian | Síntese das conclusões de cerca de 150 estudos científicos, de autoria de 17 cientistas, advertindo que “a dimensão das ameaças à biosfera, e a todas as suas formas de vida, incluindo a humanidade, é de fato tão grande que mesmo experts muito bem informados têm dificuldades para assimilá-la”.
Nasa-funded study: industrial civilisation headed for ‘irreversible collapse’? | The Guardian | Matéria no The Guardian dimensionando a crise ambiental como risco real para a civilização humana e bilhões de vidas.
Carbon Dioxide in Atmosphere Hits Record High Despite Pandemic Dip – The New York Times (nytimes.com) | Registro da concentração média mensal de CO2, que chegou ao recorde de 419 ppm (parte por milhão) no Havaí em 2021.
This Is Climate Denial’: Biden Goes to Bat for Massive Alaska Drilling Project Approved Under Trump | Common Dreams News | Matéria sobre a administração Biden, que aprovou algo em torno de 1.200 licenças de perfuração em terras federais e mais de 200 licenças marítimas, além de defender o projeto Willow, da ConocoPhillips, no Alasca - do qual se espera a emissão de 260 milhões de toneladas métricas de CO2 durante os próximos 30 anos, o equivalente a 66 usinas de carvão.
Despite ‘Green Recovery’ Vows, G7 Nations Spent Billions More on Fossil Fuels Than Renewables Over Past Year | Common Dreams News | Matéria sobre o apoio de líderes mundiais à expansão do uso de combustíveis fósseis.
Bitcoin consumes ‘more electricity than Argentina’ – BBC News & Amidst Pandemic And Economic Sufferings, 2020’s Global Military Spending Reached Highest Level In Decades| Countercurrents | Matéria sobre as pegadas de carbono do sistema de dados descentralizados das criptomoedas e do rápido crescimento da indústria de armas.
Green Capitalism: The God that Failed | World Economics Association | Livro argumentando que o capitalismo não é apenas incapaz de responder adequadamente à crise ambiental, ele é a própria causa da crise, e só pode torná-la pior.
Proposed Roads to Freedom by Bertrand Russell – Free Ebook (gutenberg.org) | Livro The Proposed Roads to Freedom: Socialism, Anarchism, and Syndicalism, de Bertrand Russell, com algumas propostas que poderiam funcionar em uma economia ecossocialista.
Summary for Policy Makers Figures, IPCC & “Food systems” were responsible for 34% of all human-caused greenhouse gas emissions in 2015, according to new research | Apontamentos do IPCC indicando que a agricultura, silvicultura e outras formas de utilização da terra respondem por quase um quarto das emissões de gases com efeito estufa, seguido do artigo na Carbon Brief, com estimativas ainda mais elevadas.
Tasked to Fight Climate Change, a Secretive U.N. Agency Does the Opposite | Matéria no New York Times indicando que o sistema de distribuição global de mercadorias produz atualmente tanto dióxido de carbono quanto todas as fábricas de carvão estadunidenses juntas.
A Marxist Theory of Extinction | Artigo denunciando que a agroindústria não é apenas a principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa, como também impõe a mercantilização e o sofrimento aos animais em favor de uma maior eficiência produtiva e lucros cada vez maiores, resultando num sistema de abate e aprisionamento de animais cuja eficiência, volume de produção e indescritível crueldade não têm precedentes
A Biologist’s Manifesto for Preserving Life on Earth & Discover Half-Earth | Manifesto pela contenção das extinções que o capitalismo põe em curso, seguido do programa “meia-Terra” proposto por Edward O. Wilson.
The Green New Deal — An Ecosocialist Study Guide | Guia de estudos sobre as propostas do Novo Acordo Verde.
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