O FUNDAMENTO RACISTA DA ARQUITETURA NUCLEAR
- C-TLP
- 10 de jan. de 2021
- 24 min de leitura
Atualizado: 29 de nov. de 2024
ELAINE SCARRY

The Racist Foundation of Nuclear Architecture, via Boston Review. Originalmente publicado em The Bulletin of The Atomic Scientists ○ 05/08/2020
Tradução R. d' Arêde
► Torna-se cada vez mais evidente que a crença racista na supremacia branca fundamenta o arsenal nuclear dos Estados Unidos, e que a atitude do país em relação às armas nucleares reforça o racismo em seu próprio território.
No último Memorial Day[i] , um policial de Minneapolis se ajoelhou sobre o pescoço de um homem negro, George Floyd, por 8 minutos e 46 segundo. Há 75 anos, um piloto estadunidense lançava uma bomba atômica sobre a população civil de Hiroshima. Os dois eventos, realidades distantes no tempo, em espaço e escala, compartilham três características chaves: ambos foram uma ação de violência do Estado; ambos exercidos contra um adversário indefeso; ambos um ato de puro racismo.
As duas primeiras características - o papel do Estado e a impossibilidade de autodefesa - provavelmente exigem pouca elaboração. Ambos os eventos foram um ato de crueldade estatal: no primeiro caso, os agentes do Estado agiram em seu próprio território, já no segundo, em território estrangeiro. Ambos foram uma ação contra um adversário indefeso: as mãos de George Floyd estavam algemadas para trás; ele não resistia à prisão e nem colocava em risco os agentes policiais, sequer os desafiava verbalmente; usou sua voz apenas para implorar que lhe fosse permitido respirar, chamando então por sua falecida mãe, à qual logo se juntou. Tão pouco poderiam se defender os estadunidenses negros executados na longa fila que precede George Floyd. O trabalho de Breonna Taylor como técnica de emergências médicas envolvia, diariamente, tanto a proteção de seus pacientes quanto a dela própria. Mas ela não poderia, dormindo profundamente em sua cama, realizar qualquer tipo de autodefesa quando a polícia de Louisville, sem mandado, e depois da meia-noite, arrombou a porta de sua casa e atirou nela oito vezes.
O reconhecimento, agora amplamente compartilhado, de que o racismo policial nos Estados Unidos não é apenas uma prática isolada de agentes individuais, mas sim uma realidade sistêmica, implica também no reconhecimento de que os estadunidenses negros perderam o direito de autodefesa em suas interações com a polícia, um direito que, pode-se dizer, subjaz a todos os outros. Nos Estados Unidos, pessoas racializadas - incluindo nativo-americanos, cujo índice de mortes pela polícia é o mais alto entre todos os grupos raciais[1] - não podem se defender. Qualquer pessoa, percebendo a iminência de ser assassinada, poderia tentar resistir (correndo, recusando-se a ser algemada, brandindo os braço ou uma arma), mas essa resistência será usada de forma retroativa, para justificar um assassinato que já estava em andamento. A única escolha é conformar-se ou resistir. Em outras palavras, ser morto ou ser morto.
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A autodefesa também não foi uma opção para os 300 mil habitantes civis de Hiroshima, tampouco para qualquer um dos 250 mil em Nagasaki. O clássico Hiroshima, de John Hersey, nos revela que, naquela manhã de agosto, ao nascer do sol, a cidade estava repleta de iniciativas corajosas, destinadas a fortalecer a capacidade coletiva de autodefesa contra ataques de guerra convencionais, como a limpeza das faixas de emergência do corpo de bombeiros, realizada por centenas de alunas colegiais, muitas das quais desapareceriam instantaneamente sob o calor de 6.000°C do flash inicial, enquanto outras tantas, mais distantes do centro, manteriam suas vidas, mas perderiam seus rostos.[2]
Os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki deram início a uma era na qual, pela primeira vez na face da Terra, e estendendo-se ao longo de sete décadas e meia até os dias atuais, a humanidade, coletiva e sumariamente, perdeu o direito de autodefesa. Ninguém no mundo - ou quase ninguém[3] - possui os meios necessários para sobreviver a uma explosão quatro vezes mais quente que o sol, nem para enfrentar a violência dos ventos e a fúria das chamas que vêm em seguida.
Os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki deram início a uma era na qual, pela primeira vez na face da Terra, e estendendo-se ao longo de sete décadas e meia até os dias atuais, a humanidade, coletiva e sumariamente, perdeu o direito de autodefesa.
Seria correto designar a autodefesa como o direito que subjaz a todos os outros? A liberdade de expressão, por exemplo, importa por muitas razões, mas, no que há de mais elementar, ela importa porque aumenta as chances de uma pessoa se defender e, dessa forma, sobreviver. O mesmo vale para o direito de livre imprensa, o direito de livre associação, o direito a um julgamento justo, o direito de não ser submetido à busca e apreensão sem um mandado. Cada um desses direitos justifica-se por seus muitos benefícios, mas o essencial é que todos eles sublinham o direito de autodefesa, o direito de se proteger e, consequentemente, preservar a própria vida. Durante séculos, a filosofia política tem questionado: "que tipo de ordenamento político resultará em um povo nobre e generoso?" Certamente não será aquele em que alguns poucos homens controlam os meios para destruir, arbitrariamente, todas as pessoas do mundo, das quais os meios de autodefesa foram eliminados.
A terceira característica comum entre o Memorial Day de 2020 e os dias 6 e 9 de agosto de 1945 é o racismo que tornou cada um destes eventos possível. O racismo é uma deformação da percepção, da qual resulta o julgamento de que pessoas com determinada cor de pele ou procedência étnica são não apenas menos dignas (de emprego, educação, dinheiro, assistência médica, confiança, responsabilidade, perdão, simpatia), mas também dispensáveis. Podem ser linchadas, estranguladas, terem seus rostos queimados; podemos fazer um estudo de seguimento depois.
Quando os estadunidenses souberam que as pessoas em Hiroshima e Nagasaki foram coletivamente vaporizadas em menos tempo do que o coração leva para bater, muitos deles aplaudiram. Mas não todos. O poeta negro Langston Hughes imediatamente reconheceu a depravação moral da execução de 100 mil pessoas, e identificou o racismo como o fenômeno que havia licenciado tal depravação: "Como é que não as experimentamos (as bombas atômicas) na Alemanha... Apenas não queriam usá-las contra gente branca"[4]. Embora a construção da arma tenha sido concluída somente após a rendição da Alemanha, em 7 de maio de 1945, o Japão já estava designado como alvo desde 18 de setembro de 1944, e o treinamento para a missão já tinha começado naquele mesmo mês[5]. O jornalista negro George Schuyler escreveu: "A bomba atômica colocou os anglo-saxões definitivamente no topo, onde permaneceriam por décadas"; o país, em sua "arrogância racial", "alcançou o triunfo máximo ao tornar-se capaz de dizimar cidades inteiras de uma só vez"[6]. Ainda no primeiro ano (antes que John Hersey começasse a despertar os estadunidenses para o terrível horror dos ferimentos), a romancista e antropóloga Zora Neale Hurston já acusava o presidente dos Estados Unidos de ser um "carniceiro", e, com desprezo à cumplicidade do silêncio público, perguntava: "É por sermos tão devotados a um ‘bom sinhô’[ii] que não sentimos sequer o dever de protestar contra tais crimes?”[7] Ela viu nesse silêncio - fosse ele praticado por brancos ou por pessoas racializadas - um ato covarde de escravidão moral à supremacia branca.
Cada uma dessas três passagens, assim como muitas outras, estão documentadas na brilhante história de Vincent Intondi, African-American Against the Bomb (2015), que relata o repúdio da comunidade negra às armas nucleares, desde 1940 até o discurso do presidente Obama, em 5 de abril de 2009, na cidade de Praga. Entre aqueles que se manifestaram com mais firmeza e frequência estão o saxofonista de jazz Charlie Parker, o compositor e pianista Duke Ellington, o ativista gay e dos direitos civis Bayard Rustin, o poeta e romancista James Baldwin, a dramaturga Lorraine Hansberry, o pastor e líder do movimento pelos direitos civis Martin Luther King Jr., e o sociólogo pan-africanista W.E.B. Du Bois. Durante essas mesmas décadas, muitas pessoas brancas também se manifestaram contra a depravação moral representada pelas armas nucleares, algumas inclusive sofrendo custos terríveis semelhantes aos sofridos por Du Bois[iii], que, por causa de sua inflamada denúncia a respeito do arsenal nuclear dos Estados Unidos, foi preso repetidas vezes, acusado de ser um agente estrangeiro sem registro, teve seu passaporte negado e, finalmente, foi solicitado a se expatriar em Gana[8]. Mas os estadunidenses negros, para além de educarem todos aqueles que estivessem dispostos a ouvir sobre a depravação moral das lesões infligidos, também têm buscado incansavelmente educar o país sobre a estrutura racial que serve de plataforma para o lançamento de mísseis.
Alguns leitores perceberão como autoevidente a compulsão supremacista branca dos Estados Unidos agindo na devastação de Hiroshima e Nagasaki, e apoiando hoje o prodigioso arsenal nuclear do país, que passa por uma renovação de 1,2 trilhões de dólares[9]. Contudo, outros leitores - mesmo aqueles que entendem a torpeza moral representada pelas armas nucleares e que trabalham sem descanso pelo seu desmantelamento - podem ser mais relutantes em reconhecer o aspecto racial. Afinal, sabemos que as armas nucleares têm o poder de eliminar não apenas uma ou outra raça, mas todas as pessoas do planeta. Estados Unidos e Rússia, que juntos possuem mais de 93% de todo arsenal nuclear mundial, há muito são designados os maiores adversários um do outro, e os russos, com frequência e de forma vaga, são descritos racialmente como brancos (ainda que eles, assim como os estadunidenses, sejam constituídos de muitos grupos étnicos diferentes). Considerando que uma guerra nuclear tenha grandes chances de ser provocada acidentalmente, ou pela apropriação das armas por um hacker ou ator não estatal, os preconceitos raciais conscientes ou inconscientes do presidente ou da cadeia de comando nuclear dos Estados Unidos podem parecer irrelevantes.
No entanto, três listas - a lista de regiões onde os presidentes dos Estados Unidos consideraram um primeiro ataque, a lista de regiões onde os Estados Unidos testaram suas bombas, e a lista de países que os Estados Unidos condenam por aspirarem adquirir armas nucleares - podem ajudar, como vias de entendimento que irradiam para além de Hiroshima e Nagasaki, a tornar inequívoco o fundamento racial da arquitetura nuclear.
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Vamos começar, então, pelas regiões geográficas onde sabemos que os presidentes dos Estados Unidos contemplaram um primeiro ataque. Em 1954, Eisenhower considerou o uso de armas nucleares no estreito de Taiwan. Os registros de suas declarações em reuniões privadas mostram a presença [do viés] racial, estivesse ele em algum momento explicando o porquê de usar a arma ou, ao contrário, abster-se de usá-la: “O presidente disse que devemos reconhecer que o Quemói[iv] não é problema nosso. Cartas a ele constantemente dizem: o que é que nos importa o que acontece àquela gente amarela lá fora?”[10]. Nixon nos disse ter considerado quatro vezes ordenar um primeiro ataque durante seu governo. Embora ele não tenha nomeado todos os quatro alvos, sabemos que um deles era a República Popular Democrática da Coreia, em 1969[11]. Ele também considerou bombardear a República Democrática do Vietnã[12] em 1972. Lyndon Johnson considerou usar uma arma nuclear contra a China para impedir a China de adquirir uma arma nuclear[13]. Podemos adicionar a esta lista outras ocasiões em que os presidentes dos Estados Unidos ameaçaram lançar um primeiro ataque, por exemplo, durante a Guerra do Golfo, quando o governo George H. W. Bush comunicou a Saddam Hussein que, caso ele usasse armas químicas, mísseis nucleares estavam posicionados para atingir seu país[14].
Assim como os países que os presidentes dos Estados Unidos escolheram para um primeiro ataque, as regiões selecionadas para a realização de testes nucleares indicam a crença de que pessoas racializadas são descartáveis. O doloroso exemplo das Ilhas Marshall foi sucintamente resumido por Dan Zak, do Washington Post: "Os Estados Unidos testaram 67 bombas nucleares de alto rendimento entre os anos de 1946 e 1958, reassentando ilhas inteiras do povo marshalês, expondo muitos à contaminação radioativa, e deixando um legado de enfermidades e exílio para as gerações seguintes"[15]. Uma das bombas era de 15 megatons. Zak descreve o impacto total dos 67 testes fazendo o seguinte cálculo: "Se todo esse poder explosivo combinado fosse uniformemente parcelado ao longo desse período de 12 anos, teríamos o equivalente a 1,6 explosão de Hiroshima por dia"[16]. A imagem não é mais reconfortante ao se verificar os testes conduzidos em solo estadunidense. Neste verão, com a chegada do 75° aniversário do teste nuclear de Trinity, realizado em 16 de julho de 1945, no Novo México, observam assinalaram a distribuição racial: "Não é de surpreender que as populações expostas à precipitação radioativa de Trinity fossem famílias de agricultores empobrecidos, a maioria hispânicos e nativos"[17]. Assim como no Novo México, também em Nevada. Um estudo publicado no jornal de medicina Risk Analysis concluiu: "Nativo-americanos residentes na ampla região ao alcance dos ventos provenientes do campo de testes de Nevada, durante as décadas de 1950 e 1960, receberam significativa exposição à radiação das armas nucleares testadas"[18].
A terceira lista diz respeito aos países que nós [estadunidenses] condenamos por seus líderes e cientistas aspirarem o desenvolvimento de uma arma nuclear. Os Estados Unidos têm tratado esses aspirantes, em todos os casos pessoas racializadas - iranianos, iraquianos, libaneses, norte-coreanos - como imorais, apesar de nossa própria e imensa arquitetura nuclear, apesar de declararmos no Tribunal Internacional de Justiça, em 1995, que possuir um arsenal nuclear, ameaçar usá-lo, usá-lo de fato, e usá-lo primeiro, não viola pactos internacionais como a Convenção para a Preservação e Punição do Crime de Genocídio das Nações Unidas[19]. Não raro, os Estados Unidos baseiam sua indignação para com os aspirantes nucleares no fato de que a aquisição de armas nucleares por mais outro violaria o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP); indicam corretamente essa violação, enquanto negligenciam obstinadamente o fato de que, durante 50 anos, os Estados Unidos têm violado o mesmo tratado, que requer, como um de seus principais pilares, que os Estados nucleares existentes desmantelem seus próprios arsenais.
Um recente artigo no The Atlantic divulgou uma nova pesquisa em neurociência, indicando que pessoas em posição de poder podem sofrer dano cerebral, uma incapacitação dos neurônios-espelho que normalmente permitem a um indivíduo compreender a posição de outra pessoa ou de outros povos[20]. Um país que possui 6 mil armas nucleares, mas critica ferozmente a Coreia do Norte por ter menos de 30; um país que tem 12 submarinos classe Ohio, cada um carregando o equivalente a 4.000 explosões de Hiroshima, mas entra em guerra contra o Iraque sob a falsa evidência de que o país teria material para a construção de uma única arma nuclear; um país que não se dá ao trabalho de comemorar os dias 6 e 9 de agosto, e as centenas de milhares de vidas incineradas naqueles dias, mas não deixa de esbravejar contra os projetos nucleares iranianos, impondo sanções ao país e desencadeando o vírus digital Stuxnet[vi], a fim de comprometer a usina de enriquecimento de urânio do Irã[21]; um país que convence a Líbia a se desfazer de seu material nuclear e que, depois de feito, ajuda a assassinar o líder do país, pode muito bem parecer um país cujos governantes - e provavelmente parte de sua população - não possuem mais neurônios-espelho funcionais.
Quando esse poder de destruição assimétrico é apontado, os Estados Unidos dizem: "sim, mas eles (i.e., pessoas racializadas) podem vir a usá-lo, enquanto nós (i.e., brancos no comando dos Estados Unidos) não faremos isso", uma declaração sumamente incoerente, visto que foi exatamente os Estados Unidos o único país a usá-lo, e usá-lo duas vezes![22]. A extrema perturbação causada por imaginar armas nucleares nas mãos de ainda mais um país, raramente se manifesta quando os Estados Unidos distribuem suas próprias armas aos aliados da OTAN, atualmente Alemanha, Bélgica, Holanda e Itália (a Turquia também possui armas nucleares estadunidenses, mas muitas foram removidas após o ano 2000, e aquelas que lá permanecem têm se tornado fonte de crescente preocupação desde 2016[23]). Já que estes quatro países tradicionalmente são vistos como povos de maioria branca, o perigo do uso imprudente ou irresponsável é supostamente inexistente; a proliferação de armas nesses países, na visão dos Estados Unidos, não viola o Tratado de Não Proliferação. Numa proeza de pensamento duplo que teria impressionado até mesmo George Orwell[vii], eles tranquilamente reconhecem que, em caso de guerra (quando os países associados à OTAN serão chamados a participar do fornecimento dessas armas), o Tratado de Não Proliferação perde efeito[24]
Assim, voltamos à questão: que tipo de ordenamento político resultaria em um povo nobre e generoso? Que tipo de ordenamento impediria que um país cometesse flagrantes assassinatos em massa no futuro? Que tipo permitiria que esse país fosse responsabilizado pelos danos causados no passado em seu próprio solo (a nativo-americanos e afro-estadunidenses) e em solo estrangeiro (às populações de Hiroshima e Nagasaki)? Que tipo de ordenamento os ajudaria a desmantelar a polícia mal treinada e militarizada que perambula por suas cidades, assim como desmantelar a arquitetura nuclear nacional? Estas realizações são muito importantes e difíceis, mas também são, certamente, o mínimo se aspiramos nos tornar um grande e bom povo no futuro.
Langston Hughes expressou a opinião de que, enquanto a injustiça racial nos Estados Unidos não cessar em seu próprio território, "será muito difícil que alguns estadunidenses deixem de pensar que o caminho mais fácil para solucionar os problemas na Ásia seja, simplesmente, jogar uma bomba atômica sobre aquelas cabeças coloridas"[25]. Ainda que esta declaração seja de 1953, próximo ao 8º aniversário dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki, ela continua muito relevante hoje, enquanto nos aproximamos do 75º aniversário: naquela época, assim como agora, a segurança da população coreana (entre a de outros povos) estava em questão. A crueldade cotidiana, infligida às pessoas racializadas nas ruas de nossas próprias cidades, funciona como um ensaio mental para que assassinatos em grande escala sejam realizados fora do país; ela mantém flexível nossa capacidade de ser cruel, embotando a mente e nos tornando fluentes ao pronunciar a palavra "dispensável".
Langston Hughes poderia ter observado o contrário com igual precisão. Nossa crueldade fora do país embrutece nossos corações e nos permite tolerar o espetáculo da injustiça racial cotidiana em nosso próprio território. Ao ver seu próprio país vangloriar-se de uma vasta arquitetura nuclear que não tem outro propósito senão o de eliminar instantaneamente da face da Terra uma população massiva de civis – com os códigos de lançamento casualmente dobrados, dia e noite, nos bolsos do nosso presidente – consciente ou inconscientemente, os estadunidenses absorvem a lição do poder, sofrem da mesma deterioração cerebral, e agora se tornam incapazes de entender até mesmo se vidas negras e nativo-americanas ainda importam.
A crueldade cotidiana, infligida às pessoas racializadas nas ruas de nossas próprias cidades, funciona como um ensaio mental para a realização de assassinatos em grande escala fora do país, mantendo flexível nossa capacidade de ser cruel; embotando a mente e nos tornando fluentes ao pronunciar a palavra “dispensável”.
Um Estado justo é um Estado que faz sua população se importar em ser justa. Um país nuclear pode faz isso? A arquitetura nuclear não exigiria de sua população precisamente que a acuidade perceptiva seja perdida? Se alguém mantiver os olhos sobre o monumental aparato [nuclear], momento a momento, será induzido a um terror e vergonha incapacitantes (como aconteceu nas primeiras duas décadas após Hiroshima e Nagasaki, quando o horror das armas e da injustiça racial estavam, dia após dia, e simultaneamente, na mente das pessoas). Ao invés disso, a visão tem agora se reduzido a um conjunto estreito de possibilidades que, exatamente por essa estreiteza, requer uma vulgarização da ética.
Se a denúncia de uma vulgarização ética autoimposta parece exagerada, considere as recentes críticas do establishment político-nuclear do país. Tal establishment tem a virtude - uma virtude praticada por muito poucos na população - de permanecer consciente do arsenal nuclear do país, mas isso tem sido feito ao restringir seu campo de visão. No início de 2019, o antropólogo Hugh Gusterson, observador de longa data de cientistas nucleares e comunidades políticas, escreveu no The Bulletin of Atomic Scientists sobre a grande assembleia reunida no Brookings Institute em Washington para acompanhar um painel com cinco destacados palestrantes, tratando da Política do Novo Começo e Modernização Estratégica[viii]. Gusterson relata que as cinco apresentações foram praticamente idênticas, colocando em debate apenas “a semântica de se a conjunção entre modernização nuclear e controle de armas deveria ser caracterizada como produto de um ‘consenso’ ou de uma ‘coalizão’”[26]. Uma crítica relacionada foi feita pelo cientista político francês Benoit Pelopidas, que descreveu, como anunciado no título de seu artigo, “O Estudo Avançado em Armas Nucleares como um Caso de Autocensura em Estudos de Segurança”. Apesar de não haver qualquer proibição externamente imposta ao livre discurso, ou restrições à argumentação, a comunidade contrai o quadro de referência voluntariamente, para contornar todas as considerações normativas e evitar que seja contemplada a possibilidade de uma reorganização radical do mundo, como a erradicação do aparato nuclear. Dois termos - “não proliferação” e “dissuasão” - são utilizados incansavelmente como ferramentas para encurralar o debate no estreito perímetro da manutenção do status quo, invalidando como irrealista toda ideia alternativa, e, consequentemente, eliminando qualquer senso de obrigação para com o futuro.[27]
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A morte de George Floyd trouxe, entre muitos outros desdobramentos, um comprometimento com a transformação da arena político-nuclear. No verão de 2020, uma série de instituições de política externa e segurança nacional dos Estados Unidos, incluindo a publicação The Bulletin of Atomic Scientists, assinaram uma declaração, de autoria da organização Women of Color Advancing Peace, Security and Conflict, concordando em levar adiante uma série de reformas, tais como assegurar que as instituições dedicadas à paz e à segurança "diversifiquem nossos quadros diretores e conselhos consultivos", reconheçam os efeitos nocivos das "microagressões" contra pessoas racializadas nos locais de trabalho, "denunciem o racismo e dividam o fardo de desmantelar a supremacia branca"[28].
Embora a lista de resoluções enfatize mudanças no âmbito dos locais de trabalho e nos órgãos dirigentes destas instituições, pode ser que estas mudanças, por sua vez, conduzam ao reconhecimento do racismo na própria filosofia das relações internacionais e das armas nucleares. A obrigação de “denunciar o racismo e compartilhar o fardo de desmantelar a supremacia branca” deve andar junto com a obrigação de reconhecer o fundamento racista da própria arquitetura nuclear (um hemisfério norte coberto por Estados nucleares, um hemisfério sul coberto por acordos e tratados de zonas livre de armas atômicas) e desmantelá-la, começando pelos dois Estados que detém 93% de todas as armas [nucleares].
Na maioria das noites de verão de 2020, realizaram-se as vigílias do movimento Black Lives Matter, não apenas nos grandes centros urbanos, mas também em pequenos municípios por todo o país. Em Arlington, Massachusetts, por exemplo, as pessoas permaneceram de pé, das 18 às 19 horas, usando máscaras e mantendo uma distância segura[xix], ao longo da larga avenida principal, enquanto uma fileira de bicicletas e carros passavam buzinando e gesticulando em aprovação aos dizeres: "Breonna Taylor", "Raychard Brooks", "George Floyd", "Diga o nome deles", "Mais ninguém", "Sem justiça, sem paz”. Nos últimos 8 minutos e 46 segundos do horário marcado, as pessoas se ajoelhavam, sobre apenas um joelho, e levantavam-se somente após os sinos da igreja anunciarem a conclusão da hora. A postura foi herdada das décadas de luta pelos direitos civis (iniciada por Marin Luther King Jr. e renovada por Colin Kaepernick e os jogadores negros da NFL); o tempo em que permanecem ajoelhados é uma referência direta ao assassinato de George Floyd, como se ao repetir a atitude do policial pudéssemos voltar atrás, reverter sua intenção e aquele desfecho. A postura expressa uma série de sentimentos: pesar pela morte de George Floyd, um contrafactual desejo de que aquilo não tivesse acontecido (e lhe fosse permitido respirar); vergonha por não termos percebido, coletivamente, e durante tanto tempo, a dimensão da violência; e um compromisso de reinventar uma forma de policiamento que nutra e auxilie nossas cidades, dos pequenos municípios aos grandes centros urbanos, ao invés de vitimá-las.
Talvez um gesto parecido com esse possa ser feito - na privacidade do próprio lar, nas avenidas centrais ou em praças e espaços públicos - às 8h15min da manhã do dia 6 de agosto e às 11h2min da manhã do dia 9 de agosto. Realizado em memória daqueles que foram assassinados ou ficaram terrivelmente marcados, por remorso de não termos enfrentado a violência mais cedo, e para compartilharmos um compromisso com o desmantelamento da arquitetura nuclear, de forma que precisemos somente rememorar, e nunca mais reencenar, o que aconteceu naqueles dias. Qual seria a duração apropriada? Talvez 53 segundos, o intervalo de tempo entre o momento que as crianças de Hiroshima apontaram para o B-29 no céu azul e o ofuscante clarão que derreteu seus olhos e apagou seu mundo. Ou, talvez, os 100 segundos que o Bulletin designou como a janela de tempo que nos separa hoje de uma catástrofe mundial.
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