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O QUE OS SOCIALISTAS DEMOCRÁTICOS DEVERIAM SABER SOBRE O ANTICOMUNISMO?

  • Foto do escritor: C-TLP
    C-TLP
  • 15 de ago. de 2021
  • 18 min de leitura

Atualizado: 29 de nov. de 2024

KRISTEN GHODSEE & SCOTT SEHON

Reunião entre Estados Unidos e OTAN

What Democratic Socialists Should Think About Anti-Communism, entrevista ao podcast Vast Majority, via Jacobin Magazine, 27/09/2020 ○ 15/08/2021

Tradução  R. d' Arêde

Um momento de reflexão lhes teria mostrado. Mas um momento é muito tempo, e pensar é um processo doloroso.” As pessoas não querem ter que pensar. Elas querem narrativas reducionistas, porque assim é muito mais fácil. 



Ao longo deste verão [de 2020], estamos observando um aumento significativo de conservadores que usam e abusam do termo marxismo. Eles são incapazes de defini-lo, mas, a partir do contexto em que o termo é usado, geralmente fica bem claro que a intenção é assustar, sobretudo vincular os socialistas, progressistas, e até mesmo liberais, àquilo que eles consideram ser um legado de totalitarismo e terror.

 

A direita tem um entendimento tão equivocado a respeito do marxismo que um debate racional sobre seu real significado parece impossível. De qualquer forma, não é nisso que eles estão interessados o objetivo é usar o marxismo como um porrete para esmagar qualquer tipo de projeto político progressista. No entanto, como Kristen Ghodsee e Scott Sehon explicaram a Micah Uetricht e Meagan Day, da Jacobin Magazine, não devemos ignorar ou minimizar essa dinâmica, por mais absurda que ela seja. Pelo contrário, precisamos tentar entender qual ideologia está sendo realmente mobilizada, e com que finalidade. Essa ideologia é o anticomunismo, um conjunto de pressupostos e falsas equivalências que vem sendo reforçado há décadas. Como Ghodsee e Sehon afirmaram em um ensaio na Aeon, em 2018, o propósito [do anticomunismo] é assegurar que as reivindicações por justiça social e redistribuição de renda sejam eternamente equiparadas a campos de trabalho forçado e à fome


A tradição socialista democrática sempre se opôs aos abusos do stalinismo. Qualquer socialismo digno deste nome deve ter a democracia em seu centro.  O anticomunismo, no entanto, jamais teve a ver com a defesa da liberdade e da democracia e sim com a destruição da esquerda e a defesa das atrocidades cometidas em nome do capitalismo. Como Ralph Miliband e Marcel Liebman escreveram em 1984,


o anticomunismo condena os abusos político e humano das ditaduras comunistas, mas frequentemente aprova, tolera, ou simplesmente ignora, os abusos e crimes dos regimes de direita. Tais regimes, não importando quão tirânico e criminoso sejam, podem contar com o firme e permanente apoio dos Estados Unidos e de outros Estados capitalistas. Tudo, é claro, em nome da democracia e da liberdade.


Meagan Day e Micah Uetricht falaram com Ghodsee e Sehon no podcast Vast Majority, abordando tópicos que vão desde a origem das campanhas de difamação e perseguição contra comunistas[1] nos Estados Unidos, até os problemas lógicos implícitos no argumento anticomunista e como era a vida no Bloco Oriental, além de como a narrativa dos totalitarismos gêmeos”, equiparando comunismo e nazismo, abriu caminho para a ascensão do fascismo.

 

A conversa foi editada em extensão e clareza. 

 

MICAH UETRICHT  O que é o anticomunismo e qual o seu papel na história recente dos Estados Unidos? 


KRISTEN R. GHODSEE A história do anticomunismo nos Estados Unidos remonta ao anos de 1919 e à primeira ameaça vermelha[2]. Desde então, é algo tão estadunidense quanto torta de maçã e baseball. O sucesso da Revolução Russa de 1917 despertou em muitos trabalhadores estadunidenses a esperança de que eles seriam capazes de reimaginar o local de trabalho, torná-lo mais justo e, talvez, possuírem alguns dos meios de produção. Desde o início, havia um arraigado medo de que essa ideologia nefasta viesse a enfraquecer a plutocracia dos Estados Unidos com a ameaça de trabalhadores reivindicando seus direitos. 


Depois da Segunda Guerra Mundial, houve um forte movimento comunista e socialista no país, mas também sentimentos profundamente anticomunista. Quando Truman se candidatou à reeleição, em 1948, Henry Wallace concorreu como candidato do Partido Progressista, e o nível de difamação e perseguição contra os vermelhos foi severo. Os apoiadores de Wallace perderam seus empregos. Isso acontecia contra o pano de fundo do Comitê da Câmara para Atividades Antiamericanas[3]. Os jovens de hoje aprendem muito sobre macartismo, mas McCarthy surge depois do comitê e dessa terrível perseguição durante a campanha presidencial de 1948.


É claro, a principal razão pela qual supostamente éramos contra o comunismo era ele ser antidemocrático, o que é irônico. Mas a razão pela qual o anticomunismo continua existindo é que ele funciona. Você pode dizer o que quiser sobre os ideais do socialismo, sobre trabalhadores terem mais direitos, sobre taxação e redistribuição, ou até Deus nos livre regulamentações do setor financeiro e bancário, e tudo que o outro lado precisa fazer é dizer “Gulags, expurgos, fome: tudo isso vai terminar em um inferno totalitário”, e o debate praticamente acaba aí.


Nesta eleição [de 2020], podemos ver que Trump está ficando sem inimigos imaginários. Imigrantes e terroristas já não assustam o bastante, assim, não me surpreende em nada que [a campanha anticomunista] esteja acontecendo outra vez. Mas é muito importante que as pessoas entendam que isso tem uma história, e que ela não está necessariamente enraizada na realidade histórica. Existiram crimes, mas eles não são toda a história do comunismo ou do socialismo. 



MEAGAN DAY Certo, existiram crimes reais nos regimes comunistas do século XX, e podemos fazer alusão a eles - crimes cujo exame se faz extremamente importante. Mas, como você argumenta em seu ensaio na Aeon, a alusão a esses crimes tem sido acompanhada pela conclusão política de que devemos desconsiderar e rejeitar qualquer coisa que esteja remotamente relacionada à ideologia defendida por aqueles regimes. Estamos perdendo um passo intermediário, o passo no qual se estabelece que a ideologia de um regime foi responsável por aqueles crimes. 


SCOTT SEHON Os anticomunistas vão dizer que “cem milhões de pessoas morreram sob o comunismo”, ou vão mostrar a foto de um homem chinês uniformizado prestes a executar uma mulher e dizer que “isto é o socialismo”, e a conclusão implícita é que devemos rejeitar o comunismo e o socialismo. Mas a conclusão não procede. Não há vínculo lógico. Você precisa fornecer algum tipo de premissa intermediária para validá-la, e eles não são explícitos nesse sentido. 


Em nosso artigo, tentamos tornar esse argumento válido, ou seja, fazer com que a conclusão decorresse das premissas de forma lógica. Para torná-lo válido, você poderia dizer que se qualquer país fundamentado sobre uma ideologia particular fez muitas coisas horríveis, então sua ideologia deveria ser rejeitada. Assim, a conclusão de que o comunismo deve ser rejeitado decorreria da afirmação de que muitas coisas horríveis aconteceram sob o comunismo.


Mas se este é o argumento, então é claro que poderíamos apresentar um argumento perfeitamente paralelo em relação ao capitalismo. Bastaria indicar que os Estados Unidos, o Reino Unido e outros países fundamentados na ideologia capitalista fizeram muitas coisas horríveis, e decorreria daí que o capitalismo deve ser rejeitado.


No caso de um argumento mais perspicaz, eles poderiam dizer que se qualquer país fundamentado sobre uma ideologia particular fez muitas coisas horríveis, e tais coisas horríveis são consequências naturais dessa ideologia, então ela deve ser rejeitada. Isso é razoavelmente plausível. Entretanto, para validar esse argumento você tem que assegurar que a fome, os expurgos e as restrições de direitos sob [os regimes de] Stalin e Mao foram consequências naturais da ideologia comunista. 

 

Com isso, abre-se então a possibilidade de que os países fundamentados na ideologia capitalista tenham feito muitas coisas horríveis, de que essas coisas sejam conclusões naturais da ideologia capitalista, e que, portanto, o capitalismo deva ser rejeitado. Claro, defensores do capitalismo vão dizer que tais coisas horríveis não são resultados naturais da ideologia capitalista. Eles dirão: “Onde você encontra em Adam Smith que deveríamos escravizar pessoas?” Nós meio que deixamos isso passar em nosso artigo, mas, na verdade, é um pouco mais difícil para os capitalistas defenderem sua posição. 


Milton Friedman ficou conhecido por aquilo que ele chamou de doutrina Friedman, onde basicamente sustentava que os capitalistas deveriam fazer o que quer que resultasse em mais dinheiro, e que caso eles se preocupassem com os bens sociais, como evitar a poluição ou acabar com a discriminação, eles estariam violando suas obrigações para com os acionistas, uma vez que seu trabalho é fazer tanto dinheiro quanto as regras da sociedade os permitam fazer. Pois bem, no período pré-Guerra Civil nos EUA[5], as regras da sociedade permitiam escravizar seres humanos. Logo, segundo o argumento do próprio Friedman, aqueles que administravam plantações tinham a absoluta obrigação moral de escravizar pessoas, pois esta era a forma pela qual fariam tanto dinheiro quanto possível, até que as regras do jogo mudassem. 


Assim, é realmente um pouco mais difícil para os capitalistas sustentarem que algumas dessas muitas coisas horríveis não decorrem da ideologia do capitalismo em determinadas condições sociais. 



MEAGAN DAY  Não apenas não há nada nos escritos de Marx e Engels que indique a necessidade de qualquer um dos processos que culminaram em fome e expurgos, como também é o caso de que houve fome em massa na Índia e na China sob a supervisão colonial do Reino Unido no final do século XIX, conforme Mike Davis escreve em seu livro Late Victorian Holocaust.


Mas você pode encontrar citações diretas de Adam Smith, em A Riqueza das Nações, dizendo coisas como “A fome jamais surgiu por qualquer outra causa que não a violência de um governo que tenta, por meios impróprios, remediar a inconveniência da escassez”, do que se conclui que a razão da fome é a excessiva interferência governamental, de modo que o governo precisaria recuar e permitir que as coisas sigam seu curso natural, que os preços se reajustem e um equilíbrio se restabeleça sozinhos. Os britânicos simplesmente seguiram essa orientação, levando à morte 10 milhões de pessoas na Índia e na China. 

 

Então, dado este exemplo, acho que podemos argumentar com muito mais firmeza que o número de mortos do capitalismo se deve à ideologia capitalista, enquanto o número de mortos do comunismo — que, é claro, reconhecemos ser algo real aqui, embora não chegue perto do fictício número de “cem milhões” — não pode ser rastreado na ideologia defendida por Marx e Engels. 


MICAH UETRICHT — Esse número foi articulado em O Livro Negro do Comunismo, e é contestado desde o lançamento do livro nos anos de 1990. A ideia por trás dele é igualar o comunismo ao nazismo, o que tem tido sucesso. Mas o que há de errado com essa reivindicação? 


SCOTT SEHON  Mesmo deixando de lado o fato de que O Livro Negro do Comunismo atribui 100 milhões de mortos ao comunismo e apenas 25 milhões aos nazistas, porque eles não contam os mortos de guerra por algum motivo, a ideia dos totalitarismos gêmeos não se sustenta. A ideologia nazista era racista até à raiz. Os nazistas colocavam os alemães arianos acima de todos os outros, e queriam mais "espaço para viver"[6] e autarquia. A guerra, assim como o sistemático maus-tratos e assassinatos de judeus, estavam na essência daquilo que Hitler vinha falando. O número de mortos do nazismo está diretamente relacionado à sua ideologia de uma maneira que o número de mortos no comunismo no século XX não está.


KRISTEN R. GHODSEE  O editor d'O Livro Negro do Comunismo, Stéphane Courtois, estava desesperado para chegar a esse número de 100 milhões tão desesperado que, de fato, dois de seus mais destacados colaboradores, Nicolas Werth e Jean-Louis Margolin, renegaram o livro tão logo ele foi lançado, porque entendiam que Courtois estava falsificando os números.

 

Não é coincidência que o livro tenha sido publicado nos anos 1990. Durante toda aquela década houve um projeto histórico para igualar o nazismo ao comunismo. Grande parte disso teve origem na Alemanha, que naquela época tentava se reunificar, e é claro, muitos alemães orientais não estavam felizes com o caminho que a reunificação estava tomando. Assim, a resposta foi uma forte narrativa ocidental sobre o quão terrível e totalitária era a vida na Alemanha Oriental o Stasi[7], o muro de Berlim, a escassez de produtos, as restrições de viagens. Ainda que isso não coincidisse necessariamente com as recordações pessoais daquela época, tornou-se uma narrativa poderosa e abrangente que começou a se alastrar lentamente da Alemanha por todo o Leste Europeu. 


A razão pela qual essa narrativa foi importante se deve ao fato de que, nos anos 1990, quase todos os países do Leste Europeu tiveram depressões mais longas e profundas do que a Grande Depressão nos Estados Unidos. Muitas pessoas não se dão conta do quão devastador foi o colapso destas economias depois de 1989, ou após 1991, se considerarmos as ex-repúblicas da União Soviética. O esforço para construir o capitalismo em cima de economias estatais causou um enorme sofrimento aos países do Leste Europeu. 

 

Enquanto isso acontecia, esses países estavam sendo transformados não apenas em economias de mercado, mas em democracias, o que significava que as pessoas teriam o direito de votar. E é claro, elas queriam rejeitar todas aquelas reformas neoliberais que lhes eram enfiadas goela abaixo. Muitas pessoas se tornaram extremamente nostálgicas do passado comunista, e pensavam cada vez mais em como as coisas poderiam ter sido se tivessem seguido uma terceira via. 

 

É nesse momento que encontramos, no Leste Europeu, essa incrível e hegemônica discussão a respeito dos crimes do comunismo, equiparando-o ao nazismo. Museus são abertos. A União Europeia cria uma data para homenagear as vítimas do nazismo e do stalinismo. Em 2018, vários políticos liberais de direita na Europa assinam a Plataforma da Memória e Consciência Europeia[8], promovendo a narrativa dos totalitarismos gêmeos. 


Alguns de meus colegas na Romênia chamam isso de “comunismo zumbi”, ou “socialismo zumbi”, que é um modo de dissuadir as pessoas do voto em partidos de esquerda ou da defesa de quaisquer programas sociais coletivos. É importante saber que, no Leste Europeu, pessoas cujos pais e avós foram expropriados sob o comunismo, em muitos casos tiveram as propriedades restituídas, ou seja, estavam literalmente recebendo propriedades durante as privatizações dos anos 1990. Assim, dizer que aqueles regimes comunistas realmente expropriaram a propriedade é, antes de mais nada, uma ameaça à propriedade recebida. Não se tratava apenas de ideologia era também do interesse econômico imediato das pessoas. 


Eles negariam até mesmo o Holocausto a serviço dessa narrativa. Eu poderia dar exemplos da Letônia, Romênia, Bulgária vejamos o caso búlgaro. Uma das “vítimas do comunismo” foi o ministro do Interior, que assinou os mandados que autorizaram a deportação de judeus trácios e macedônios para [o campo de extermínio de] Treblinka[10]

 

O discurso dos totalitarismos gêmeos cria uma equiparação do nazismo com o comunismo, ou com qualquer tipo de política de esquerda. Como resultado, até mesmo o socialismo democrático, assim como os trabalhadores e cidadãos comuns que se indignam com a plutocracia e recorrem ao sistema político para lutar por seus direitos, são automaticamente associados aos piores crimes dos gulags de Stalin, aos expurgos e à fome.


Quando isso começou a acontecer, as elites olharam em volta e disseram: “Temos radicais de esquerda e radicais de direita, mas já que eles são moralmente equivalentes, os radicais de direita são aqueles que protegerão melhor nossa propriedade, então estamos com eles”. Dessa forma, a narrativa dos totalitarismos gêmeos abriu o caminho para o ressurgimento do fascismo.  



MICAH UETRICHT  O anticomunismo liberal nos Estados Unidos tem um longo histórico, no qual se diz preservar as liberdades de expressão e associação, e os valores liberais essenciais. Mas se você seguir o anticomunismo até sua conclusão lógica, como os Estados Unidos têm demonstrado repetidamente, você acaba apoiando as atrocidades dos regimes antidemocráticos de direita. 


KRISTEN R. GHODSEE  Correto, os Estados Unidos instalaram Pinochet por cima de Salvador Allende no Chile. Podemos pensar em muitos outros exemplos. Na Indonésia, um milhão de pessoas foram assassinadas por causa de uma história inventada a respeito de um grupo de supostos comunistas que teria matado alguns generais. A história que incitou a violência dizia que os generais foram assassinados, supostamente por mulheres comunistas que lhes teriam arrancado os genitais e, então, realizado uma grande orgia comunista. 

 

Essa história foi contada e promovida pelos estadunidenses, e criou um absoluto caos na Indonésia. Mais tarde, os corpos dos generais foram exumados, evidenciando que essa mentira havia sido forjada, uma completa farsa. Mas se você ler sobre os assassinatos em massa na Indonésia, em 1965, verá que as pessoas ainda continuam culpando as mulheres comunistas. 



MEAGAN DAY Os elementos de absurdidade e histeria que frequentemente encontramos no anticomunismo lembram-me dois tuítes que vi recentemente.  

O primeiro é de Scott Adams, criador dos quadrinhos Dilbert, que tuitou o seguinte: “Me pergunto se o Black Lives Matter sabe que o [movimento] Antifa era aliado de Hitler e o ajudou a chegar ao poder. Parece que isso seria uma fonte de tensão, dado o foco do Black Lives Matter na história. O Antifa deve reparações a alguém que tenha perdido familiares ou propriedades para a Alemanha Nazista?”. Esse é um bom exemplo da típica equiparação entre extrema esquerda e extrema direita, mas absolutamente incoerente, como tantas expressões do anticomunismo. 

O segundo é de Katie Daviscourt, representante da Turning Point USA[11], que tuitou assim: “Sabe o que é irônico? Democratas LGBTQ+ tumultuando, saqueando e queimando nossas cidades para trazer o marxismo para a América, quando Karl Marx literalmente assassinou todos os gays!”. Aqui a equiparação não é apenas de toda a esquerda com os piores abusos do comunismo no século XX, mas literalmente de Karl Marx com Joseph Stalin, o que, imagino, seja o erro que explique o disparate deste tuíte. E novamente, filtrado à moda caleidoscópica através da insanidade da cultura contemporânea. 


SCOTT SEHON Esses aí são impressionantes! Eu gostava do Dilbert, sabe como é, parecia um cartoon muito bom. Enfim, uma coisa que você pode observar aqui é a estratégia anticomunista de apenas colocar tudo no mesmo saco de horrores. Ano passado, Rand Paul fez isso de forma explícita em seu livro The Case Against Socialism. Ele dedicou um capítulo inteiro tentando mostrar que os nazistas eram socialistas. Seus argumentos eram terríveis, sendo o principal deles o fato de que o termo “socialista” estava bem ali, na denominação Nacional-Socialista. Mas se então a República Democrática Alemã [Alemanha Oriental] não era propriamente democrática, o argumento cai por terra imediatamente. 


Mas eles não estão tentando realmente apelar à razão. Não é esta a estratégia. A estratégia é tão somente fazer essas associações emocionais, e criar um efeito cognitivo enviesado[12]. Seja o viés negativo ou positivo, todas as nuances são perdidas. Tudo é preto ou branco, e nada é pior do que ser igualado aos nazistas, então, se você tiver sucesso ao associar alguém aos nazistas, esse alguém será jogado no mesmo saco de horrores. Da mesma forma, não poderíamos aprender nada com os sucessos obtidos pelos países do bloco soviético, porque eles também tiveram muitos fracassos. Eles recebem um enviesamento negativo [pitchfork effect]


Claro, os conservadores gostam de reivindicar o monopólio da lógica e da razão, e dizer que os comunistas e socialistas não pensam de forma clara e rigorosa. Mas basta olhar bem de perto seus argumentos, e eles caem por terra. 


KRISTEN R. GHODSEE   A incoerência é parte da coisa. Eles estão tentando afetar emocionalmente as pessoas. E eles estão nos afetando sendo estúpidos e absurdos, mas também estão afetando pessoas que estão menos conscientes das nuances da história, através da associação de palavras com palavras-chave que invoquem algo ruim. Não importa qual seja a relação entre elas. É uma sopa de letrinhas, mas que age sobre as pessoas de forma emocional. Elas pensam, “eu vou apoiar Trump porque preciso me opor a esses nazi-antifas-judeus-gays-assassinos-saqueadores-negros...” 

  

MICAH UETRICHT — … que irão decepar seus genitais! 


KRISTEN R. GHODSEE  Exato. E acho importante ressaltar aqui que isso é eficaz. Mesmo que seja estúpido, funciona! Para eles, é muito fazer o que Scott está dizendo, criar esse efeito cognitivo negativo, onde toda a história do comunismo, do socialismo democrático, do marxismo, do anarquismo e afins, é reduzida aos piores crimes do stalinismo na década de 1930. Assim, todas as nuances e complexidades na região desaparecem.


Não se leva em conta o fato de que a Iugoslávia não estava alinhada[13]; o fato de que na Hungria existiu o assim chamado “Comunismo Goulash”[14], porque eles tinham uma sistema secundário de livre mercado; o fato de que havia impulsos democráticos em lugares como a Tchecoslováquia, que estava tentando realizar o socialismo com uma “face humana”; o fato de que o Solidariedade, na Polônia, foi um movimento de reforma entre os trabalhadores; o fato de que, mesmo na União Soviética, a Glasnost e a Perestroika foram políticas concebidas para reformar aquilo que eles reconheciam como um sistema em queda.


Todas as nuances de como era a vida sob o comunismo no Leste Europeu são apagadas. Passei a maior parte de vinte e cinco anos realizando pesquisas no Leste Europeu, e tenho muitos amigos e familiares nessa parte do mundo. Qualquer pessoa que tenha vivido sob o comunismo irá te dizer que houve coisas definitivamente negativas. Mas todos eles também têm filmagens caseiras e vários álbuns de fotos daquilo que lhes parece uma vida totalmente normal sob o socialismo. 


Meu livro, “Por que as mulheres têm melhor sexo sob o socialismo”[15], foi traduzido para o polonês, tcheco, alemão, e acaba de ser lançado na Rússia. Tenho recebido muitos e-mails dizendo “Obrigado por contar às pessoas que nossas vidas não eram tão ruins. Não eram incríveis, mas não eram ruins”. Pessoas que viveram na região sob o comunismo, especialmente aquelas que ainda estão por lá, têm uma percepção muito mais matizada de como era a vida. Uma forma de mitigar os efeitos do anticomunismo é remover esse véu, essa terrível lente que sempre usamos para olhar o Leste Europeu.

 

Isso sem mencionar o que acontece quando olhamos para além do Bloco Oriental, para o Iêmen, Cuba, os sandinistas na Nicarágua, o Vietnã e a China, sem falar nos partidos social-democratas na Europa Ocidental e nos partidos comunistas que estão participando no processo democrático em lugares como a Índia. Você não pode reduzir tudo isso aos crimes de Stalin. 

 

Mas a razão deles criarem este efeito cognitivo negativo [pitchfork effect] é poder usá-lo como um porrete, a fim de esmagar os sonhos políticos da esquerda. É um método realmente desonesto, que coloca uma camisa de força na imaginação dos mais jovens. 

 

SCOTT SEHON  A. E. Housman tem uma ótima citação: “Um momento de reflexão lhes teria mostrado. Mas um momento é muito tempo, e pensar é um processo doloroso.” Eu acho que isso está por trás de grande parte do debate. As pessoas não querem ter que pensar em nada disso. Elas querem narrativas reducionistas, porque assim é muito mais fácil. 

 


Kristen R. Ghodsee  Professora de Estudos Russos e do Leste Europeu, membro do Grupo de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade da Pensilvânia. Sua pesquisa se concentra em gênero, socialismo e pós-socialismo na Europa Oriental, e seus artigos e ensaios têm aparecido em publicações como Foreign Affairs, Washington Post e New York Times. Autora de oito livros, incluindo "Por que as mulheres têm melhor sexo sob o socialismo e outros argumentos a favor da independência econômica"

Scott Sehon  Professor de Filosofia em Bowdoin College, autor de "Free Will and Action Explanation: A Non-Causal, Compatibilist Account" (2016) 

Meagan Day  

Redatora na Jacobin Magazine, coautora de "Bigger than Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism".  Micah Uetricht Editor adjunto na Jacobin Magazine e apresentador do podcast da Rádio Jacobin, The Vast Majority. Autor de Strike for America: Chicago Teachers Against Austerity e coautor de Bigger than Bernie: How We Go from the Sanders Campaign to Democratic Socialism.


NOTAS DE TRADUÇÃO 
[1] Red-baiting: segue a linha da falácia lógica Reductio ad Stalinum, com a intenção de desqualificar a validade geral de um adversário político, juntamente com seu argumento lógico, acusando, denunciando ou atacando esse adversário, individualmente ou em grupo, identificando-o como anarquista, comunista, marxista, socialista, stalinista, ou simpatizante destas ideologias; “caça aos comunistas”, “perseguição aos vermelhos”.
[2] Red Scare: "perigo vermelho", "ameaça vermelha", disseminação de medo generalizado contra uma potencial ascensão do comunismo ou do anarquismo na sociedade ou no Estado. O termo é usado mais frequentemente para se referir a dois momentos da história nos Estados Unidos: a primeira "ameaça vermelha" (1917-1920), que ocorreu imediatamente após à Primeira Guerra Mundial e à onda de revoluções comunistas subsequente à Revolução Russa de 1917, e a segunda "ameaça vermelha" (1947-1957), que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial e ficou conhecida como “macartismo”.
[3] House Un-American Activities Committee: comitê criado em 1938 pela Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, a fim de conduzir investigações contra supostas atividades comunistas entre as décadas de 1940 e 1950
[4] Nota removida
[5] Antebellum South: período Antebellum (pré-guerra) se refere a um período histórico dos EUA, que vai de 1810 até o início da Guerra Civil estadunidense (Guerra de Secessão) em 1861. É caracterizado pela polarização entre abolicionistas e escravistas.
[6] Lebensraum: "espaço vital", "espaço para viver", termo usado pelos nazistas para justificar expansão territorial; conceito concebido por Friedrich Ratzel, que propôs uma antropogeografia como um ramo da geografia humana que estudaria o espaço de vida dos agrupamentos humanos. O conceito foi concebido nos seguintes termos: "Toda a sociedade, em um determinado grau de desenvolvimento, deve conquistar territórios onde as pessoas são menos desenvolvidas. Um Estado deve ser do tamanho da sua capacidade de organização", e é explicado por Richard J. Evans da seguinte forma: "Os alemães, na visão de alguns, precisavam de mais 'espaço para viver' - a palavra alemã era Lebensraum –, e isso teria que ser obtido à custa de outros, mais provavelmente dos eslavos. Não porque o país estivesse literalmente superpovoado – não havia evidência disso –, mas porque aqueles que promoviam tais visões estavam tomando a ideia de territorialidade do reino animal e aplicando-a à sociedade humana. Alarmados com o crescimento das florescentes cidades da Alemanha, buscavam a restauração de um ideal rural no qual colonos alemães seriam senhores sobre camponeses eslavos 'inferiores'" (cf. EVANS, Richard J. A chegada do Terceiro Reich. São Paulo: Planeta, 2016, p. 74)
[7] Stasi: Ministério para a Segurança do Estado, principal organização da polícia secreta e de inteligência da República Democrática Alemã, criada em 8 de Fevereiro de 1950, baseando suas operações na capital, Berlim Oriental.
[8] Platform of European Memory and Conscience: é uma organização internacional não governamental, sem fins lucrativos, fundada sobre o código civil da República Tcheca. Estabelecida em Praga, em 14 de outubro de 2011, por 20 membros fundadores de 12 Estados membros da União Europeia, a plataforma reúne 62 instituições públicas e privadas e organizações de 20 países - sendo 14 da União Europeia (Suíça, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Alemanha, Holanda, República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Eslovênia, Romênia, Bulgária, França), Ucrânia, Moldávia, Islândia, Albânia, Canadá e Estados Unidos, que atuam na pesquisa, documentação, conscientização e educação sobre os regimes totalitários na Europa do século 20. (cf. https://www.memoryandconscience.eu/about-the-platfor/about-the-platform/)
[9] Nota removida
[10] Treblinka: Campo de extermínio na Alemanha Nazista. Primeiramente estabelecido como campo de trabalhos forçados, tornou-se um dos três centros de execução criado como parte da Operação Reinhard (cf. Enciclopédia do Holocausto online)
[11] Turning Point USA: Movimento estudantil estadunidense de orientação liberal.
[12] Efeito pitchfork e efeito halo: vieses cognitivos através dos quais algo ou alguém é julgado de forma negativa ou positiva, respectivamente, com base em um único aspecto, geralmente circunstancial
[13] A República Socialista Federativa da Iugoslávia foi um dos membros fundadores do Movimento Não-Alinhado (MNA), sediando a Primeira Cúpula do movimento, em setembro de 1961, e a 9.ª Cúpula, em setembro de 1989. Iniciado no rescaldo histórico da Guerra da Coréia, o MNA é um fórum composto por 120 países que não estão formalmente ao lado ou contra qualquer grande bloco de poder internacional, originalmente o bloco oriental, encabeçado pela União Soviética, e o bloco ocidental, encabeçado pelos EUA.
[14] Comunismo Goulash: Variante do comunismo tentado na Hungria. Após a Revolução Húngara de 1956, foram instituídas políticas visando a criação de padrões elevados de qualidade de vida para o povo húngaro juntamente com reformas econômicas que promoveram um senso de bem estar e relativa liberdade cultural, responsáveis pela reputação de tornar a Hungria “a caserna mais feliz”, associada a elementos de mercado econômico regulado  e desviando-se dos princípios stalinistas.
[15] "Por que as mulheres têm melhor sexo sob o socialismo, e outros argumentos a favor da independência econômica", de Kristen Ghodsee, publicado no Brasil pela editora Autonomia Literária 


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